quinta-feira, 6 de novembro de 2008

The queen of love is dead

Nina Simone está morta. E somente quem aprendeu a sentir com ela uma série de emoções que acabam banais quando descritas, pode entender do que falo. Impossível explicar sem parecer o tartamudear de um tolo o que acontece em canções como Love in vain, Music for lovers, Man with a horn. E falar de como ela interpretava os clássicos? Que esforço absurdo é esse de querer que Don´t let me be misunderstood, The look of love, Ne me quitte pas signifiquem alguma coisa além da compreensão dos conhecedores? Esforço inútil. Nina Simone está morta. Mas não de agora, não no noticiário desta noite. Nina Simone está morta há muito tempo. A primeira vez que a ouvi eu tinha 15 anos. Backlash blues era uma entre tantas músicas em uma coletânea de vários artistas destas que se vendem em balaios. Por mais de um ano foi minha canção preferida, mas como tinha o hábito (que ainda mantenho) de ouvir os cds sem olhar a caixa, demorei todo este período para saber que era uma mulher e não um homem a dona da voz. No dia em que li Nina Simone, fiquei pasmo. Como uma mulher podia cantar com voz tão grave? Com o nome dela na cabeça fui até uma loja e achei um disco inteiro solo. Amaldiçoei minha ignorância. Era bom demais! Era mais que Holiday, muito mais que Sarah ou Ella. Ela arriscava mais, e ainda tocava o piano como o trapezista que dá um salto mortal sem rede. Eu encontrara finalmente uma coragem que jamais ouvira em uma cantora ou em qualquer intérprete vocal, um tipo de coragem que até então só tinha encontrado nos melhores músicos de sopro. Dos meus 16 até hoje, Nina me deu lições completas sobre os mais variados temas. Sobre suingue: My baby just cares. Sobre como amar fisicamente uma mulher: In the dark. Para as maledicências do ciúme: I put a spell on you. Nos momentos em que viver simplesmente parece difícil demais: In the morning. Para redimir a brutalidade inevitável de minha alma: Angel of the morning. E agora morta. Mas talvez tenha morrido (ou tenham-na matado) ainda menina quando não pudera seguir a carreira como pianista clássica por ser negra. Talvez no momento em que o Reverendo King foi baleado (anotem aí: ouvir a suíte do Dr. Martin Luther King Jr.), no momento em que desejou ser homem para pegar em armas e se vingar. Não entrarei aqui no aspecto de como alguém poderia sobreviver à última e derradeira morte da indiferença de um público embotado e anômalo. O auto-exílio canadense e francês se explica perfeitamente. A Europa sempre abrigou os criadores rejeitados da América. Para ela, hoje, de forma derradeira. A verdade é que suas roupas étnicas, sua cara sempre fechada, a originalidade musical que impedia definições de estilo, jamais poderiam ser usadas como produto popular pela indústria fonográfica. Tanta seriedade nunca caiu bem num país de entreteiners. Nina era séria como Coltrane, e boa demais como Coltrane. Nina era muito o Miss Corações Solitários do Nathanael West e por isso morreu antes, muito antes desta noite. Por ser tão necessária, escapou do precisar da gente medíocre de sua terra. Nina Simone está morta, mas fez o que podia para nos salvar. Está tudo lá em seus discos. Não seremos salvos, é verdade; ao ouvi-la, porém, erige-se em mim toda a religião de que preciso. Evoé.

Texto escrito em 21 de abril de 2003 para o site Argumento.net

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