quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Um dos meus contos prediletos

Traduzi do espanhol (já que japonês não nesta vida) um conto do Akutagawa que é uma obra-prima em todos os aspectos. Mais uma prova de que o Deus Ex Maquina produz excepcionais resultados artísticos. Para esclarecer: os senins, segundo a tradição chinesa, eram eremitas sagrados, que viviam no coração de uma montanha, e que tinham poderes mágicos como os de voar quando quisessem, além de desfrutar de uma extrema longevidade.

Senin – Ryonusuke Akutagawa

Um homem que queria se empregar como servente chegou, certa vez, a cidade de Osaka. Não sei seu verdadeiro nome: conheciam-no apenas pelo seu nome de servente, Gonsuké, pois era, antes de mais nada, um servente para qualquer trabalho.
Este homem — que chamaremos de Gonsuké — foi a uma agência de empregos que prometia COLOCAÇÕES PARA QUALQUER TRABALHO, aproximou-se do funcionário, que fumava seu grande cachimbo de bambu, e disse:
— Por favor, senhor Funcionário, eu gostaria de ser um senin . O senhor poderia fazer a gentileza de buscar uma família que pudesse me ensinar o segredo para ser um senin enquanto trabalho como servente?
O funcionário, atônito, perdeu a fala por um instante, impressionado pelo ambicioso pedido de seu cliente.
— Não me ouviu, senhor Funcionário? — disse Gonsuké. — Eu desejo ser um senin. Faria a gentileza de buscar uma família que me tomasse de servente e me revelasse o segredo?
— Lamentamos decepcioná-lo — contestou o funcionário, voltando a fumar seu cachimbo esquecido —, mas nenhuma vez sequer em nossa longa trajetória comercial tivemos que buscar um emprego para aspirantes ao grau de senin. Se você fosse a outra agência, quem sabe...
Gonsuké se aproximou ainda mais do funcionário, roçando-lhe com seus joelhos salientes, dentro da calça azul, e começou a argüir desta maneira:
— Ei, ei, senhor, isso não está muito certo. Por acaso não diz o cartaz COLOCAÇÕES PARA QUALQUER TRABALHO? Uma vez que promete qualquer trabalho, o senhor deve conseguir qualquer trabalho que lhe pedirmos. O senhor estará mentindo intencionalmente, se não cumprir com sua palavra.
Frente a um argumento tão racional, o funcionário não lhe censurou a explosiva contestação:
— Posso lhe assegurar, senhor Forasteiro, que não há engano algum. Tudo está correto — apressou-se em alegar o funcionário —, mas se você insiste em manter esse seu estranho pedido, terei que lhe pedir que retorne aqui amanhã de manhã. Trataremos de conseguir o que nos pede.
Para se livrar de Gonsuké, o funcionário fez essa promessa e conseguiu, momentaneamente ao menos, que o servente fosse embora. Não é necessário, contudo, dizer que ele não contava com a possibilidade de conseguir uma casa onde pudessem ensinar ao servente os segredos para ser um senin. De modo que, ao se desfazer do visitante, o funcionário acudiu a casa de um médico vizinho.
Contou-lhe a história do estranho cliente e lhe perguntou ansiosamente:
— Doutor, que família o senhor crê que poderia fazer deste rapaz um senin? Tenho urgência.
Aparentemente, a pergunta desconcertou o doutor. Pôs-se a refletir por um momento, os braços cruzados sobre o peito, contemplando vagamente um grande pinheiro no jardim. Foi a esposa do doutor, uma mulher muito astuta, conhecida como a Velha Raposa, quem respondeu por ele, ao ouvir a história do funcionário.
— Nada mais simples. Mande-o para cá. Em um par de anos faremos dele um senin.
— Fará realmente isso, senhora? Mas que maravilha! Não sei como lhe agradecer por sua oferta tão gentil. Bem, agora confesso que desde o início me dei conta de que havia alguma coisa em comum entre um médico e um senin.
O funcionário, que felizmente ignorava os desígnios da mulher, agradeceu mais uma vez e se afastou com grande júbilo.
Nosso doutor o seguiu com a vista; parecia muito contrariado; logo, voltando-se na direção da mulher, resmungou com profundo mal-humor:
— Tonta! Você se deu conta da idiotice que acabou de fazer? O que fará no dia em que esse tipo, com o passar dos anos, começar a se queixar de que não lhe ensinamos nada do que lhe havíamos prometido?
A mulher, longe de lhe pedir perdão, virou-se para ele e grasnou:
— Estúpido. É Melhor você não se meter nisso. Alguém tão retardado como você, tão estupidamente tonto, é incapaz de juntar nesse mundo mais do que o suficiente para comer e manter unidos a alma e o corpo.
Esta frase fez com que o marido se calasse.
Na manha seguinte, como havia sido acordado, o funcionário levou seu rústico cliente à casa do doutor. Como havia sido criado no campo, Gonsuké se apresentou naquele dia vestido de modo cerimonioso, trajando haori e hakama , talvez em honra de ocasião tão importante. Gonsuké, em sua aparência, não se diferenciava de nenhum modo da idéia que se tem de um camponês tradicional: isto foi uma pequena surpresa para o doutor, que esperava ver algo de inusitado na aparência do aspirante a senin. O doutor o olhou com curiosidade, como a um animal exótico trazido das lonjuras da Índia, e logo disse:
— Me disseram que você deseja ser um senin, e eu tenho muita curiosidade em saber quem lhe meteu essa idéia na cabeça.
— Bem, senhor, não é muito o que posso lhe dizer — replicou Gonsuké. — Realmente foi muito simples: quando vim pela primeira vez a esta cidade e olhei o grande castelo, pensei o seguinte: que até mesmo nosso grande governante Taiko, que vive por lá, morrerá algum dia; que você pode viver suntuosamente, mas ainda assim voltará ao polvo, como o resto de nós. Em palavras resumidas, que toda nossa vida não é mais que um sonho passageiro... Era isso justamente o que eu sentia naquele instante.
— Então — introduziu-se prontamente na conversa a Velha Raposa —, você faria qualquer coisa para ser um senin?
-Sim, senhora, qualquer coisa para atingir meu objetivo.
-Muito bem. Então você viverá aqui e trabalhará para a gente durante vinte anos a partir de hoje e, ao fim desse prazo, será o feliz possuidor do segredo.
— De verdade, senhora? Ser-lhe-ei eternamente agradecido.
— Mas — ela acrescentou —, nesse período de vinte anos você não receberá de nós nem um centavo de salário. De acordo?
— Sim, senhora. Muito obrigado, senhora. Estou de acordo com tudo.
Desta maneira começaram a transcorrer os vinte anos que passou Gonsuké a serviço do médico. Gonsuké retirava água do poço, cortava a lenha, preparava as comidas e fazia todo o trabalho de limpeza. Isso, porém, não era tudo: tinha que acompanhar o doutor em suas visitas, carregando em suas costas um baú cheio de remédios. Nem mesmo por todo este trabalho, Gonsuké pediu um mísero centavo que fosse. Em verdade, em todo o Japão, não se poderia encontrar melhor servente por menor preço.
Passaram-se, por fim, os vinte anos, e Gonsuké, novamente vestido cerimoniosamente com seu haori engomado, como na primeira vez em que fora visto, apresentou-se diante dos donos de casa.
Expressou-lhes seu agradecimento por todas as bondades recebidas durante os últimos vinte anos.
— E agora, senhor, senhora — prosseguiu Gonsuké —, poderiam me ensinar hoje, como prometeram há vinte anos, como se chega a ser um senin, alcançando assim a juventude eterna e a imortalidade?
— E agora, o que fazemos? — suspirou o doutor ao ouvir o pedido. Depois de estar a nosso serviço durante vinte longos anos por nada, como poderiam, em nome de tudo o que é sagrado, dizer-lhe agora que eles nada sabiam a respeito do segredo dos senins? O médico se desvencilhou da situação dizendo que não era ele, mas sim sua mulher quem sabia do tal segredo.
— Você tem que pedir a ela que lho diga — concluiu o doutor, afastando-se de modo torpe.
A mulher, contudo, suave e imperturbável, disse:
— Muito bem, então serei eu a lhe ensinar, mas leve em conta que você deverá fazer exatamente o que eu lhe ordene, por mais difícil que pareça. De outra maneira, nunca chegará a ser um senin. Além disso, se você não conseguir executar minhas ordens, terá que nos servir por outros vinte anos, sem paga, pois do contrário, e acredite em mim, do contrário o Deus Todo-poderoso acabará com sua vida em um ato.
— Muito bem, senhora, farei qualquer coisa, por mais difícil que seja — disse Gonsuké.
Ele estava muito contente e esperava que ela lhe desse a ordem.
— Bem — disse ela —, escale, então, esse pinheiro do jardim.
Desconhecendo por completo os segredos, as intenções da mulher consistiam apenas em lhe impor qualquer tarefa impossível, garantindo, dessa maneira, mais vinte anos de serviços gratuitos. Ao ouvir o comando, Gonsuké começou a subir na árvore, sem vacilar.
— Mais alto — ela gritava —, mais alto, até o topo.
De pé, na borda da varanda, ela erguia o pescoço para ver melhor o seu servente escalar a árvore. Viu seu haori flutuando no alto, entre os galhos mais elevados desse pinheiro tão comprido.
— Agora solte a mão direita.
Gonsuké se aferrou ao pinheiro o mais que pôde com a mão esquerda e, cautelosamente, deixou livre a direita.
— Solte também a mão esquerda.
— Calma lá, minha boa mulher, por favor — disse por fim seu marido, vislumbrando a altura. — Você sabe que se o camponês soltar o galho, cairá no chão. Ali em baixo há uma grande pedra e, tão certo quanto eu sou um médico, esse homem morrerá.
— Dispenso seus preciosos conselhos nesse momento. Deixe-me em paz. Ei! Homem! Solte a mão esquerda. Pode me ouvir?
Gonsuké soltou, vacilante, a mão esquerda. Com as duas mãos soltas dos galhos, como ele poderia se manter preso à árvore? Depois, enquanto o médico e sua mulher retomavam o fôlego, Gonsuké e seu haori puderam ser vistos a se desprender dos galhos, e logo... e logo... Mas o que é isso? Gonsuké se deteve! Ele se deteve no meio do ar, em vez de cair como um tijolo, e lá em cima ficou, em plena luz do meio-dia, suspenso como uma marionete.
— Sou eternamente grato a vocês dois, do fundo do meu coração. O senhor e a senhora fizeram de mim um senin — disse Gonsuké lá do alto.
Ele pôde ainda ser visto a lhes fazer uma respeitosa reverência e logo começou a subir cada vez mais alto, dando suaves passos no céu azul, até se transformar em um pontinho e desaparecer entre as nuvens.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Run with the hunted

Antes que a minha editora me processe por divulgar material ainda não publicado, trago um último poema do Buk, de uma deliciosa auto-ironia, que estará presente nesta coletânea somente com textos autobiográficos chamada Run With the Hunted (ainda sem título em português) a sair pela LP&M.

o dia em que mandei meu pé de meia pro espaço

e, eu disse, você pode pegar seus tios e tias ricos
e avós e pais
e todo o petróleo fétido deles
e seus sete lagos
e todos os seus perus
e búfalos
e o estado inteiro do Texas,
quer dizer, seus espantalhos
e suas caminhadas de sábado à noite no calçadão,
e sua biblioteca de 50 centavos
e seus vereadores corruptos
e seus artistas aveadados —
pode pegar tudo isso
e seu jornal semanal
e seus famosos tornados,
e suas nojentas enchentes
e todos os seus gatos miantes
e sua assinatura da Time,
e enfiar no rabo, baby,
bem no meio do rabo.

posso voltar a manusear uma picareta e um machado (acho)
e posso arranjar
25 pratas por uma luta de 4 assaltos (talvez);
claro, estou com 38
mas um pouco de tintura pode esconder os fios
grisalhos do meu cabelo;
e ainda posso escrever um poema (às vezes),
não se esqueça disso, e mesmo que
não rendam nada,
é melhor do que esperar por mortes e petróleo,
e dar tiros em perus selvagens,
e esperar que o mundo
comece a girar.

tudo bem, vagabundo, ela disse,
dê o fora.

o que? eu disse

dê o fora. você teve seu
último acesso de fúria.
cansei dos seus acessos de fúria:
você sempre atua como um
personagem de uma peça de O’Neill.

mas eu sou diferente, baby,
não consigo
evitar.

você é diferente, essa é boa!
Nossa, quanta diferença!
não bata
a porta
quando sair.

mas, baby, eu amo o seu
dinheiro!

você nunca me disse
que me ama!

o que você quer afinal
um mentiroso ou um
amante?

de você não quero nada! se manda, vagabundo,
se manda!

... mas baby!

volta lá pro seu O’Neill!

fui até a porta,
fechei-a com cuidado e me afastei,
pensando: tudo o que elas querem
é um índio de madeira
que diga sim e não
e fique parado junto ao fogo e
não faça muito barulho;
mas acontece que você já não é mais
uma criança, rapaz;
da próxima vez jogue visando
o pé de
meia.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Na mesma linha

Este poema do Bukowski do post abaixo me fez lembrar o da poetisa (a gente reconhece nosso arcaísmo pelo uso dessa forma) uruguaia Idea Vilariño, também uma dolorosa despedida do amor. Ya no.

Já não será,
já não viveremos juntos, não criarei teu filho
não coserei tua roupa, não te terei à noite
não te beijarei ao partir, nunca saberás quem fui
por que me amaram outros.

Não chegarei a saber por que nem como, nunca
nem se era de verdade o que disseste que era,
nem quem foste, nem o que fui para ti,
nem como teria sido vivermos juntos,
amar-nos, esperar-nos, estar.

Já não sou mais do que eu para sempre e tu
já não serás para mim mais do que tu.
Já não estás em um dia futuro
não saberei onde vives, com quem
nem se te lembras.

Não me abraçarás nunca como essa noite, nunca. 
Não voltarei a te tocar. Não te verei morrer.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Um legítimo poema de amor

Talvez o maior desafio da literatura, e da própria arte, seja reproduzir não a vida como ela poderia ter sido do Aristóteles e todo o corolário da verossimilhança, mas sim aquilo que vai no íntimo da natureza humana, que se expressa apenas como sentimento. Transmutar esse sentimento para o papel, para uma tela, eis toda a dificuldade técnica da arte. Imerso na tradução do Bukowski, segue um poema bem conhecido que, a meu ver, consegue expressar com dignidade o que é o amor. Mas já falei demais.

confissão

à espera da morte
como um gato 
que saltará sobre a
cama               

sinto terrivelmente por
minha esposa

ela verá este
corpo
duro e
branco
vai sacudi-lo uma vez, depois
quem sabe
outra:

“Hank!”

Hank não
responderá.

não é minha morte o que
me preocupa, é minha mulher
abandonada com este
monte de
nada.

quero
no entanto
que ela saiba
que todas as noites
dormindo
ao seu lado

que mesmo as discussões
inúteis
sempre foram esplêndidas

e que as palavras
difíceis
que sempre temi
dizer
podem agora ser ditas:   

eu te
amo.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Um inédito do Buk em português

Em breve um novo livro do velho Buk estará nas prateleiras brasileiras. Estou traduzindo uma coletânea de textos autobiográficos, chamada Run with the hunted, composta de prosa e poesia. Segue um poema dos bons:

Conselho amigável para uma porção de jovens

 

para o Tibet.

Monte em um camelo.

Leia a bíblia.

Pinte seus sapatos de azul.

Deixe a barba crescer.

a volta ao mundo numa canoa de papel.

Assine The Saturday Evening Post.

Mastigue apenas com o lado esquerdo da boca.

Case-se com uma perneta e se barbeie com uma navalha.

E entalhe seu nome no braço dela.

 

Escove os dentes com gasolina.

Durma o dia inteiro e suba em árvores à noite.

Seja um monge e beba chumbo grosso e cerveja.

Mantenha sua cabeça dentro d’água e toque violino.

Faça uma dança do ventre diante de velas cor de rosa.

Mate seu cachorro.

Concorra à prefeitura.

Viva num barril.

Rompa sua cabeça com uma machadinha.

Plante tulipas sob a chuva.

Mas não escreva poesia. 

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

The queen of love is dead

Nina Simone está morta. E somente quem aprendeu a sentir com ela uma série de emoções que acabam banais quando descritas, pode entender do que falo. Impossível explicar sem parecer o tartamudear de um tolo o que acontece em canções como Love in vain, Music for lovers, Man with a horn. E falar de como ela interpretava os clássicos? Que esforço absurdo é esse de querer que Don´t let me be misunderstood, The look of love, Ne me quitte pas signifiquem alguma coisa além da compreensão dos conhecedores? Esforço inútil. Nina Simone está morta. Mas não de agora, não no noticiário desta noite. Nina Simone está morta há muito tempo. A primeira vez que a ouvi eu tinha 15 anos. Backlash blues era uma entre tantas músicas em uma coletânea de vários artistas destas que se vendem em balaios. Por mais de um ano foi minha canção preferida, mas como tinha o hábito (que ainda mantenho) de ouvir os cds sem olhar a caixa, demorei todo este período para saber que era uma mulher e não um homem a dona da voz. No dia em que li Nina Simone, fiquei pasmo. Como uma mulher podia cantar com voz tão grave? Com o nome dela na cabeça fui até uma loja e achei um disco inteiro solo. Amaldiçoei minha ignorância. Era bom demais! Era mais que Holiday, muito mais que Sarah ou Ella. Ela arriscava mais, e ainda tocava o piano como o trapezista que dá um salto mortal sem rede. Eu encontrara finalmente uma coragem que jamais ouvira em uma cantora ou em qualquer intérprete vocal, um tipo de coragem que até então só tinha encontrado nos melhores músicos de sopro. Dos meus 16 até hoje, Nina me deu lições completas sobre os mais variados temas. Sobre suingue: My baby just cares. Sobre como amar fisicamente uma mulher: In the dark. Para as maledicências do ciúme: I put a spell on you. Nos momentos em que viver simplesmente parece difícil demais: In the morning. Para redimir a brutalidade inevitável de minha alma: Angel of the morning. E agora morta. Mas talvez tenha morrido (ou tenham-na matado) ainda menina quando não pudera seguir a carreira como pianista clássica por ser negra. Talvez no momento em que o Reverendo King foi baleado (anotem aí: ouvir a suíte do Dr. Martin Luther King Jr.), no momento em que desejou ser homem para pegar em armas e se vingar. Não entrarei aqui no aspecto de como alguém poderia sobreviver à última e derradeira morte da indiferença de um público embotado e anômalo. O auto-exílio canadense e francês se explica perfeitamente. A Europa sempre abrigou os criadores rejeitados da América. Para ela, hoje, de forma derradeira. A verdade é que suas roupas étnicas, sua cara sempre fechada, a originalidade musical que impedia definições de estilo, jamais poderiam ser usadas como produto popular pela indústria fonográfica. Tanta seriedade nunca caiu bem num país de entreteiners. Nina era séria como Coltrane, e boa demais como Coltrane. Nina era muito o Miss Corações Solitários do Nathanael West e por isso morreu antes, muito antes desta noite. Por ser tão necessária, escapou do precisar da gente medíocre de sua terra. Nina Simone está morta, mas fez o que podia para nos salvar. Está tudo lá em seus discos. Não seremos salvos, é verdade; ao ouvi-la, porém, erige-se em mim toda a religião de que preciso. Evoé.

Texto escrito em 21 de abril de 2003 para o site Argumento.net

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Corpo à vista

Soma de imagens incomparáveis, este poema do mexicano Octavio Paz está entre um dos mais belos já escrito em espanhol, e talvez em todas as línguas. Suas metáforas são de uma solidez e se materializam de tal maneira diante de nossos olhos que ao ler esses versos, ergue-se ainda a velha esperança de que a verdadeira arte pode redimir a nossa fragilidade, a fugacidade de nossos desejos, a corrupção de nossa memória para o amor.
Segue a tradução de Cuerpo a la vista, reflexo de um mundo em que o erotismo das palavras ainda ardia.

Corpo à vista

E as sombras se abriram outra vez e revelaram teu corpo:
teus cabelos, outono espesso, queda de água solar,
tua boca e a branca disciplina de seus dentes canibais, prisioneiros em chamas,
tua pele de pão apenas dourado e teus olhos de açúcar queimado,
lugares onde o tempo não transcorre,
vales que só meus lábios conhecem,
desfiladeiro da lua que ascende à tua garganta por entre teus seios,
cascata petrificada da nuca,
alta meseta de teu ventre,
praia sem fim de teus flancos.

Teus olhos são os olhos fixos do tigre
e um minuto depois são os olhos úmidos do cão.

Sempre há abelhas em teus cabelos.

Tuas costas fluem tranqüilas sob meus olhos
como a costa do rio à luz do incêndio.

Águas adormecidas golpeiam dia e noite tua cintura de argila
e em tuas costas, imensas como os areais da lua,
o vento sopra por minha boca e seu longo queixume cobre com suas duas asas cinzentas
a noite dos corpos,
como a sombra da águia a solidão do deserto.

As unhas dos dedos dos teus pés são feitas do cristal do verão.

Entre tuas pernas há um poço de água adormecida,
baía onde o mar à noite se acalma, negro cavalo de espuma,
cova ao pé da montanha que esconde um tesouro,
boca do forno onde se assam as hóstias,
risonhos lábios entreabertos e atrozes,
núpcias da luz e da sombra, do visível e do invisível
(lá a carne espera por sua ressurreição e pelo dia da vida perene).

Pátria de sangue,
única terra que conheço e que me conhece,
única pátria em que creio,
única porta ao infinito.